sexta-feira, 6 de junho de 2008

Dona Isabel

Hoje vou falar da dona Isabel.
Ela nunca há-de ler este texto, e tenho muitas dúvidas que alguém, algum dia, lhe venha a falar do que aqui vou escrever.
Não sei se terei pena que assim seja.
O mais provável é que, por mais que escreva, a dona Isabel há-de ser sempre a mesma, há-de nunca reparar em mim e vai continuar com a sua vida independente de qualquer linha preenchida com meia dúzia de palavras a seu respeito que nada mais valem do que o valor que pode ter um a, um, b, ou um c.

Mas hoje o dia foi diferente, foi um pouquinho diferente mas tão profundo e tão cheio de teor.
A dona Isabel olhou para mim e falou. Foram os meus cinco minutos mais preenchidos dos últimos tempos.

E ela assim.
Tão distante, sempre tão deslocada, com o coração apertado, quase pedindo desculpa por existir. Medindo cada palavra com medo do erro da fala, escondendo aquela voz dobrada pelos anos, pela dor e pelo álcool, e mostrando todo o receio de quem acha que é sempre mais pequeno e menos importante do que os outros.
Pensando que não tem qualquer direito, nem que seja de sorrir pelo menos uma vez.

“Esta vida é uma cabra” disse-me, assim como quem despeja o coração resignado e preenchido, desde sempre, com a mágoa, a aflição e o desassossego.
-“Nunca fui feliz! Não sei o que é que vim cá fazer, a minha vontade é morrer, mas nem ao cemitério me deixam ir.
Sabe? Eu não sei o que é um carinho, nunca soube, por isso, se calhar, nunca eduquei os meus filhos e agora é isto.
Mas eu gosto muito deles, e o meu netinho!? Ai, senhor, havia de ver o meu netinho.
Sabe, senhor, ontem comprei-lhe um bolinho para ele levar para a escola, ficou todo contente, e embora cheio de dores porque lhe bateram na semana passada, foi todo feliz porque também ele tinha um bolo de aniversário como os outros.
O meu coração saltava só de o ver. Coitadinho, na semana passada, um rapazola apanhou-o e ele, porque tem uma “dificuldadezinha” na cabeça, levou tantas que até lhe partiram os óculos.
Mas sabe? No dia a seguir apanhei o miúdo.
- Bateu-lhe dona Isabel? Perguntei eu preocupado.
- Não, claro que não! Fui ter com ele e disse-lhe que aquilo que ele fez não se faz nem a um animal. Um dia ele também vai ser grande e vai perceber que foi muito mau para o meu netinho e que Deus há-de encarregar-se de lhe mostrar que temos de respeitar todos os outros.
O senhor sabe como são as crianças...
E depois o meu menino é assim como é, eu também sei, já em nova todos diziam que era maluca e que não sabia nada.
Eu podia ter dado ao outro duas ou três palmadas, senhor, mas de que ia adiantar só o ia magoar ainda mais e não resolvia nada.
Sabe eu sou assim tolhida das ideias.

Não! Dona Isabel, não!
Você não é assim.
Hoje você mostrou-me porque é que eu sou pequenino, porque é que o mundo é um lugar onde também há coisas boas, hoje a senhora trouxe-me à terra.

Não chore dona Isabel.
Quem é que ia adivinhar que ontem o dia ia terminar assim, com a senhora banhada em lágrimas num choro que durou até esta manhã quando eu, sem querer, me sentei ao pé de si.
Cada lágrima era uma dor, uma ferida, uma mágoa.
Sabe dona Isabel, o facto de ter fugido ontem da festa de aniversário do seu neto é perfeitamente natural numa pessoa que passou o que a senhora passou.
Não! Não golpeie mais a sua alma, o seu neto há-de ser grande e, tenho a certeza, há-de compreender. Há-de compreender que a vida dá-nos e leva-nos. Há-de compreender que a avó é uma grande mulher, que também tem direito a ficar assim chocada por uma palavra mal dita, num minuto infeliz, por uma boca sem fé, sem compreensão, mesmo que seja de um filho, naquele dia tão igual tão cheio de nada e de tudo. Depois de uma vida tão vaga de sorrisos e tão inundada pela dor.
Não fique assim dona Isabel, na próxima semana vai ver o seu netinho nas marchas e vai ver que ele vai ficar outra vez feliz.
Dona Isabel, há quem por muito menos nunca nada tenha tentado.
E a senhora não só tentou como realizou, construiu, criou, amou, sofreu, aguentou e conseguiu.
Por muito pouco que ache, o seu mundo foi dos maiores que eu conheci.
Sincero e lutador.

Os nossos dois mundos encostaram-se hoje, e sentados naquelas cadeiras ombro a ombro completaram-se, porque hoje a senhora fez a minha vida valer um pouco mais.
Sorrio, agora, ao pensar na sua face tão rosadinha, e envergonhada, nos seus olhos que tudo diziam e mostravam, e imagino como é tão grande este ser, com quem tive hoje a sorte de partilhar cinco minutos que mais valeram que cinco volumes de qualquer enciclopédia.
Mais me contou a grande dona Isabel, coisas que vou guardar para sempre no meu coração.

Sabem?
Depois daqueles cinco minutos estávamos os dois muito melhor e quem agradeceu fui eu.
Afinal não era ela que necessitava de falar.
Eu é que precisava de ouvir.
Hoje falei com um anjo.